segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Crise de Identidade

O MÉDICO E O MONSTRO (1932)




Por Renato Rosatti


"Minha análise da alma, da psique humana, leva-me a crer que o ser humano não é verdadeiramente um, mas verdadeiramente dois. Um deles esforça-se para alcançar tudo que é nobre na vida. É o que chamamos de lado bom. O outro, quer expressar impulsos que prendam-no a obscuras relações animais com a terra. Esse é o que podemos chamar de mal. Ambos travam um eterno combate no íntimo da natureza humana, e contudo, estão atados um ao outro. E este elo provoca a repressão ao mau e remorsos no bom. Agora, se esses dois seres pudessem ser separados um do outro, quão livre o bom em nós poderia ser, que alturas poderia alcançar! E o assim chamado mal, uma vez liberto, buscaria sua própria realização, e deixaria de nos perturbar..."
Com esse profundo discurso inflamado para uma platéia de acadêmicos numa universidade, o médico cientista Dr. Henry Jekyll, interpretado por Fredric March (1897/1975), que ganhou um Prêmio Oscar por sua atuação, apresenta sua visão da real natureza humana e divulga suas experiências com uma poção química capaz de separar as duas personalidades existentes no Homem, evidenciando seus lados "bom" e "mal", na versão expressionista de 1932 de "O Médico e o Monstro" (Dr. Jekyll and Mr. Hyde). O livro clássico do escocês Robert Louis Stevenson (1850/1894), escrito em 1886 com o nome original de "The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde", é um dos mais filmados na história do cinema fantástico, com uma infinidade de versões das quais podemos a título de ilustração citar quatro produções antigas. Uma da época do cinema mudo (1920), de John S. Robertson e estrelada por John Barrymore, a já citada versão de 32 dirigida e produzida por Rouben Mamoulian e com Fredric March, o filme de 41, de Victor Fleming e com Spencer Tracy, Ingrid Bergman e Lana Turner, sendo essas três versões com fotografia em preto e branco, e finalmente "O Soro Maldito" (I, Monster, 71), produção inglesa da "Amicus" protagonizada pela dupla Christopher Lee e Peter Cushing, além do misterioso Mike Raven. A história é ambientada na Londres do final do século XIX, onde o respeitado médico Dr. Henry Jekyll é o defensor de uma teoria onde existem dois lados totalmente distintos nos homens, um "bom" e um "mal". Acreditando que ao separar essas duas personalidades poderia dar mais liberdade ao ser humano, ele então decide criar uma substância química capaz de realizar tal feito. Testando em si próprio, os efeitos são devastadores, fazendo-o alternar entre o recatado Dr. Jekyll e o monstruoso Sr. Hyde, responsável por uma série de crimes horrendos. Ao descobrir que na verdade libertou um monstro interior, o médico tentou interromper a dosagem da poção, mas já era tarde demais e ele perdera o controle sobre suas duas personalidades, colocando em risco a vida das pessoas que o cercam como seu amigo Dr. Lanyon (Holmes Herbert), sua amável noiva Muriel Carew (Rose Hobart), o rígido pai dela, General Carew (Halliwell Hobbes), e uma bela dançarina de bar noturno, Ivy Pearson (Miriam Hopkins), uma jovem atormentada pela tirania do Sr. Hyde.


Disponível em: http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/medico.html

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CRISE DE IDENTIDADE

O texto acima me leva a pensar que, todos nós, em algum momento de nossas vidas, já agimos como se tivéssemos duas personalidades.
Duvido que você, realizando uma auto análise de seu passado, calmamente, não irá encontrar vestígios de algum tempo, no qual, talvez mesmo sem querer, passou a impressão de ser aquilo que, na realidade, não era, ou não era exatamente.
Acredito que, mesmo sem a menor intenção ou maldade, também todos nós, pelo menos em algum dia de nossas vidas, já fomos como "o médico e o monstro".
O fato é que, muitas vezes, os diferentes aspectos de nossa vida e a pluralidade de ambientes que frequentamos com o fim de socializar, fazer contatos (sejam estes profissionais ou meros sinônimos de diversão), induzem-nos, quase que de forma impulsiva, a agir de forma diferente em cada situação. E esta última varia expressivamente conforme as circuntâncias de lugar, pessoas e até mesmo de acordo com o "nosso momento".
No entanto, há um sutil liame entre o que é uma distância notadamente "normal" e o que é um espaço nitidamente discrepante existente no meio do que uma pessoa realmente é, em sua essência, e da imagem que ela representa para os outros.
E é exatamente daí que surge a crise de identidade, a qual inevitavelmente acontece quando essa dicrepância entre o eu verdadeiro e a imagem refletida tornam-se muito opostas, de modo que passe a ser um fardo, um peso muito grande para o indivíduo sustentar tal imagem ou mesmo corresponder às expectativas daqueles que nela acreditam e depositam sua confiança. A pessoa em crise de identidade sente-se impotente para atender as demandas derivadas, não de seu verdadeiro eu, mas de suas imagens construídas. Sim, tudo piora quando não se trata de apenas uma outra "máscara", mas várias outras, uma para cada ambiente ou situação: no trabalho, profissionalmente; com os amigos, socialmente; com a família (geralmente aqui representa-se o eu verdadeiro); na igreja..etc.
O conflito não mais é com os outros, não reside mais na auto afirmação de querer ser aceito ou visto de forma positiva, mas sim consiste no eu interior que, em meio a tantas "máscaras", não sabe se reconhecer mais, não se conhece mais...
Nada faz o ser humano mais perdido que a perda de sua essência...
A aflição está na guerra interior de não admitir o que sou, ou o que com as mudanças me tornei, e de não querer negar o que, faticamente, deixei de ser, mas que continuo representando, sustentando em uma imagem.
E os outros cobram. A sociedade exige-nos a correspondência ou a atuação de acordo com o que a nossa imagem representa. Isto é, se agimos de forma destoante das expectativas sociais, de duas uma: ou são geradas frustrações à respeito de nossa pessoa ou são reproduzidas surpresas; como dois polos: negativo e positivo, respectivamente. Não interessa de que maneira, repercute em "quebra"da imagem. Mas para tal desfazimento é preciso estar pronto para surpreender, é necessário querer  despojar-se do "velho eu".
Caso contrário: crise de identidade.
Em meio ao conflito interno, há alguns que retornam, em partes (porque uma vez ocorrida a  mudança é impossível retornar totalmente ao status quo ante), aos antigos valores ou a sua essência..tão correspondentes, talvez, a sua imagem....Enquanto outros, mais ousados ou tão corajosos quanto os primeiros (não sei qual lado é mais difícil) resolvem assumir sua "nova roupagem" e uma nova imagem, agora menos retorcida e mais ligada ao "real eu"...
"É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo." (Clarice Lispector)
De um modo geral, os que se encontram no meio de uma crise de identidade raramente se manifestam...preferem o silêncio, a discrição e a ausência de responsabilidade por qualquer ato ou palavra que possam, de um jeito ou de outro, comprometê-los com a não correspondência de sua(s) imagem(s)...
Contudo, é inteiramente normal um indivíduo ter uma ou até mais crises de identidade em sua vida, visto que esta é dinâmica e todos nós mudamos, para melhor ou pior, amadurecemos e crescemos e fazemos isso por meio das crises.
Não podemos é deixar "o barco afundar".


A descoberta ou a redescoberta do verdadeiro eu consubstancia-se ao silêncio interior, na introspectividade da alma, dentro do pensamento e no coração, onde tudo acontece.

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